Deus na literatura: entre a voz e a letra

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Pe. Antonio Iraildo Alves de Brito


Na bíblia o profeta é um porta-voz de Deus, que lhe confere e autoriza a mensagem.

Os profetas eram verdadeiros artesãos da palavra. Tinham de suar na elaboração dos oráculos.

A mentalidade ocidental formada sobre o regime da letra, ao se referir à literatura, geralmente, pensa em texto escrito. Ocorre que antes do texto há a voz. Pensemos, por exemplo, na antiguidade grega onde a palavra falada ocupava lugar especial e o poeta era personagem principal da cena social, cultural, religiosa. O poeta era um arquivo vivo. Eles eram os arquivos de uma sociedade que nasceu sem escrita (Cf. VERNANT, 1973, p. 76). De modo que, mesmo quando a letra já ascendia havia certa desconfiança quanto à validade e eficiência do discurso escrito.

Grandes obras antigas, como Ilíada e Odisseia, foram compostas para serem ditas em voz alta e serem ouvidas. A voz era o veículo de relevante valor para manter vivos na memória os efeitos grandiosos dos heróis. O filósofo Platão, por exemplo, opõe-se à letra. Para ele a escrita seria incapaz de se igualar à expressividade da voz. Pensemos igualmente nos profetas bíblicos com seu insistente “ouve, Israel”. Entre outras implicações, isso tem que ver com a capacidade humana de ouvir. Diz-se que o primeiro sentido a ser despertado em nós, ainda no ventre, é a audição (Cf. ZUMTHOR, 2007, p. 86-87).

Isso para dizer que a literatura está para além do texto escrito. Há, por assim dizer, uma onipresença da voz em todo texto. A voz o subjaz. De modo que, tratando-se de literatura e teologia, consideramos a interação entre voz e letra.

Os gregos e a bíblia
Para os gregos o poeta é um porta-voz, inspirado por um deus e fala em nome desse deus. Na bíblia, o profeta igualmente é um porta-voz de Deus, que lhe confere e autoriza a mensagem. No entanto, os profetas não eram apenas veículos de transmissão da palavra divina. Eles estavam, sim, a serviço dessa palavra, mas não passivamente como meros repetidores. Eles eram verdadeiros artesãos da palavra. Tinham de suar na elaboração dos oráculos. De modo que, se nas confrarias de aedos e cantores gregos havia o treinamento para o domínio da linguagem poética, no mundo bíblico também há o esforço de aprimoramento do discurso oracular. Profetas são grandes poetas.

Diante do exposto, interessa-nos pensar literatura (voz/letra) e teologia enquanto áreas que lidam com realidades humanas. Tudo o que é humano, sem nenhuma estranheza. No caso da teologia, mais do que uma atividade crítica da fé, no intuito de dar razão da mesma (1 Pd 3,15), reflete a existência do ser humano na referência a Deus.

Paulo, Riobaldo e Patativa
Imaginemos o apóstolo Paulo e sua criatividade literária e teológica quando se dirigia às comunidades. O capítulo 13 da primeira carta aos Coríntios é verdadeira peça poética sobre o amor. O apóstolo se derrama em poesia para falar de um tema básico, comum. Porém, necessário, duradouro. “Se eu não tenho amor, sou como sino ruidoso ou címbalo estridente” (1Cor 13,1). E no capítulo 12, referindo-se aos carismas no seio da comunidade põe em cena o corpo. “Todos nós, judeus ou gregos, escravos ou livres, fomos batizados num só Espírito para sermos um só corpo. E todos bebemos de um só Espírito” (1 Cor 12,13). De fato, o apóstolo está se esforçando para que haja comunicação na comunidade. Comunicação no sentido original, isto é, comunhão. E é genial que ele se utilize da imagem do corpo como o símbolo por excelência da comunicação. A célebre frase de Harry Pross de que “toda comunicação começa no corpo e nele termina” calha bem nesta perspectiva.

Mas temos exemplos ainda mais perto de nós. Bastaria ouvir Riobaldo em seus devaneios em Grande sertão: veredas. “Deus vem vindo: ninguém não vê. Ele faz é na lei do mansinho – assim é o milagre. E Deus ataca bonito, se divertindo, se economiza” (ROSA, 2006, p. 23). Poucas homilias conseguiriam sintetizar em menos de 30 palavras a grandeza de Deus. Riobaldo o faz naturalmente, como criança sem a preocupação de pecar. A literatura tem um segredo. Esse segredo chama-se liberdade. Aí consiste o seu poder. “Deus é definitivamente; o demo é o contrário Dele…”, conclui enfaticamente Riobaldo.

Ainda mais perto de nós temos Patativa do Assaré. Aliás, seria de muito proveito adentrar sua vasta obra, feito um grande cordel, colorido tal colcha de retalhos. De uma ponta a outra sua poesia diz de uma visão do mundo que enfatiza o lugar de Deus. O poder de Deus, sua relação com as pessoas, a natureza e a história.

Deus é a força infinita
É o espírito sagrado
Que tá vivendo e parpita
Em tudo que foi criado.
Não há quem possa contá
É assunto que não dá
Pra se dizê no papé
Não inxiste professô
Nem sábio, nem iscritô
Pra sabê Deus cuma é.
Apenas se tem certeza
Que ele é a santa verdade
É a subrime grandeza
Em bondade e divindade. (ASSARÉ, 2005, p. 83).

A literatura, portanto, refletindo a existência humana e usando o engenho da linguagem pode “dizer Deus” de múltiplas formas. Não quer, porém, definir nada. Jamais teria a pretensão de definir o indefinível. No entanto, como expressão de altíssimo grau de liberdade, inclusive livre das amarras acadêmicas, amplia o discurso.

No pequenino e lindo pirilampo
De noite vejo dos primores seus,
Se o vento ruge na relva do campo
No seu sussurro eu ouço a voz de Deus. (ASSARÉ, 2006, p. 186).

Referências:

ASSARÉ. Patativa do. Ispinho e fulô. São Paulo: Hedra, 2005.

Melhores poemas. Org. Cláudio Portella. São Paulo: Global, 2006.

ROSA, João Guimarães. Grande Sertão: Veredas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2006.

Nova Bíblia Pastoral: Paulus, 2014.

VERNANT, J. P. Mito e Pensamento entre os gregos. São Paulo: Difel, 1973.

ZUMTHOR, Paul. Performance, Recepção, Leitura. São Paulo: Cosac Naify, 2007.

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