Diálogo pacificador

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Por Isabel Orestes Silveira

Ontem ouvi uma frase de um amigo querido que me deixou perplexa, triste, frustrada, não sei descrever direito a sensação que tive. Talvez todos esses sentimentos misturados, tenham me invadindo, a medida em que ele dizia: “Não há desculpa, se a pessoa quiser, ela sai dessa situação, é só trabalhar que cresce, o Brasil é a terra de oportunidades”. Conversávamos sobre a situação do povo brasileiro, sobre o momento histórico pelo qual passa o país, sobre a tragédia planetária – refiro-me a pandemia Covid 19, e ainda falávamos das desigualdades que se agravam cada vez mais em virtude do descaso político. Foi exatamente ao tocarmos nesse assunto: “política”, que a conversa ficou indigesta.

Assuntos assim em que há embate, me lembram sempre da brincadeira infantil conhecida como “cabo de guerra”, em que grupos contrários, separados pela marca no chão, se posicionavam em linha reta segurando uma corda. Ganha o time que derrubar o adversário trazendo-o para o seu lado. Essa analogia me ocorreu ao pensamento, no imediato momento em que a conversa ficou aquecida. Por isso, pensei: “eu não brinco de cabo de guerra”. Brinquei na infância, não gostei. Todos se amontoam no ato de puxar o outro. As mãos, não se unem para construir, mas para derrubar. Os que perdem ficam caídos no chão. No esforço em puxar, os corpos dos que fazem mais força, se amontoam empilhados e caem de igual modo. Que graça tem essa brincadeira? Minhas mãos ficaram feridas, o grupo adversário perdeu, mas meu time também saiu machucado.

Não quis esticar a conversa, por isso, rapidamente abordei o fato sobre a complexidade que é lidar com as desigualdades, com a educação no país dada a sua extensão territorial, a diversidade socioeconômica e cultural que dificultam ações rumo a equidade social. Não pude deixar de dizer que, como educadora, acredito que a educação pode atenuar as desigualdades e que pode haver transformação social se houver vontade política. Mudei de assunto com rapidez para não perder os amigos. Nesse drible, entre palavras ditas e outras tantas pensadas e não ditas, opto pela escrita, ato acalentado e ruminado. Volto-me a pensar nas pessoas em situação de vulnerabilidade social, os esfarrapados do mundo: estão assim por que querem, por que Deus quer? Certa vez, o educador Paulo Freire (1997, p. 25-26) estabeleceu um diálogo amoroso com camponeses chilenos e lhes fez a mesma pergunta. Me permitam compartilhar a narrativa:

“- Muito bem – disse eu a eles. – Eu sei. Vocês não sabem. Mas por que eu sei e vocês não sabem? Aceitando o seu discurso, preparei o terreno para minha intervenção. A vivacidade brilhava em todos. De repente a curiosidade acendeu. A resposta não tardou. – O senhor sabe porque é doutor. Nós não. – Exato, eu sou doutor. Vocês não. Mas, por que eu sou doutor e vocês não sabem? – Porque foi à escola, tem leitura, tem estudos e nós, não. – E por que fui à escola? – Porque seu pai pôde mandar o senhor à escola. O nosso não. – E por que os pais de vocês puderam mandar vocês à escola? – Porque eram camponeses como nós. – E o que é ser camponês? – É não ter educação, posses, trabalhar de sol a sol sem direitos, sem esperança de um dia melhor. – E por que ao camponês falta tudo isso? – Porque Deus quer. – E que é Deus? – É o Pai de todos. – E quem é pai aqui nessa reunião? Quase todos de mão para cima, disseram que o eram. Olhando o grupo todo em silencio, me fixei num deles e lhe perguntei: – Quantos filhos você tem? – Três. – Você seria capaz de sacrificar dois deles, submetendo-os a sofrimentos para que o terceiro estudasse, com a vida boa, no Recife? Você seria capaz de amar assim? – Não. – Se você – disse eu -, homem de carne e osso, não é capaz de fazer uma injustiça desta, como é possível entender que Deus o faça? Será mesmo que Deus é o fazedor dessas coisas? Um silêncio no qual algo começava a ser partejado. Em seguida: – Não. Não é Deus o fazedor disso tudo. É o patrão”.

Gosto deste episódio e admiro o modo pedagógico com que o educador Paulo Freire vai formulando perguntas aos camponeses, convocando o pensamento do interlocutor à reflexão. Gosto de pensar na resposta do camponês quando disse, ser Deus o Pai de todos. Gosto, por que creio na verdade bíblica, inspirada pelo apóstolo Paulo: “[…] há um só Deus e Pai de todos, o qual é sobre todos, age por meio de todos e está em todos” (Efésios 4:6).

E de volta a Freire (1997 p. 22), gosto como ele vivendo quatro anos no Chile, consegue olhar para trás e, com o distanciamento necessário repensa o Brasil, o que havia dito e nos seus momentos de “refrescamento da memória”, descreve os equívocos cometidos e as consequências da “incontenção verbal”, dos “desmandos de palavreado”, referindo-se ao “cabo de guerra”, aos discursos acirrados, que no esforço por mudanças, acabam sendo prejudiciais.  E diz:

Na verdade, toda essa incontenção verbal, este desmando de palavreado não têm nada que ver, mas nada mesmo, com uma correta, uma verdadeira posição progressista. Não têm nada que ver com uma exata compreensão da luta enquanto práxis política e histórica. É bem verdade, também, que essa discurseira toda, precisamente porque não se faz no vazio, termina por gerar consequências que retardam ainda mais as mudanças necessárias. Às vezes, porém, as consequências do palavrado irresponsável geram também a descoberta de que a contenção verbal é uma virtude indispensável aos que se entregam ao sonho por um mundo melhor. Um mundo em que mulheres e homens se encontrem em processo de permanente libertação.

Em uma sociedade marcada por polaridades e discursos de ódio, o amor deve prevalecer nas relações interpessoais independentemente da ideologia. A alteridade e a empatia devem marcar nossa conduta ética. Não obstante ao fato de eu acreditar que a perversidade do sistema é quem promove uma ideologia da exclusão e faz com que os indivíduos sem condições se sintam incompetentes e culpados, autores de seus fracassos, penso que a educação pode trazer consciência para os que estão a margem. Porém, no ato do educar e no encontro com opiniões divergentes, acolho a “fraternidade” do diálogo pacificador. É, pois, nesse viés de conscientização que acolhemos com esperança a Campanha da Fraternidade 2021:  “Fraternidade e diálogo: compromisso de amor”, lapidado pelo lema “Cristo é a nossa paz: do que era dividido, fez uma unidade” (Efésios 2:14a).

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